A busca por vida extraterrestre sempre fez os cientistas buscarem por planetas que se assemelham à Terra, com água líquida na superfície e atmosferas acolhedoras. No entanto, uma pesquisa inovadora da NYU Abu Dhabi redefine essa visão, sugerindo que há chances de a vida microscópica prosperar em um tipo de ambiente muito diferente: o subsolo de planetas e luas do nosso próprio Sistema Solar. A chave para essa sobrevivência inesperada? A própria radiação cósmica, que antes era vista apenas como uma força destrutiva.
O estudo, assinado por seis cientistas, desafia a visão tradicional de que a vida necessita exclusivamente de luz solar ou calor vulcânico. Ele propõe um conceito revolucionário: a Zona Habitável Radiolítica (ZHR). Esta é uma área onde a química da radiólise, induzida por partículas de alta energia vindas do espaço profundo, pode ser potencialmente utilizada para sustentar a atividade metabólica.
O processo central dessa nova teoria é a radiólise. Partículas carregadas de alta energia, conhecidas como raios cósmicos galácticos (RCGs), viajam pelo espaço e podem penetrar vários metros abaixo da superfície de objetos planetários com atmosferas rarefeitas, como Marte, Europa (lua de Júpiter) e Encélado (lua de Saturno).

Ao atingir depósitos de gelo ou água subterrânea, esses raios cósmicos “quebram” as moléculas de água. Essa desintegração forma espécies reativas como elétrons solvatados, radicais hidroxila, radicais de hidrogênio, peróxido de hidrogênio (H2O2) e gás hidrogênio (H2). Crucialmente, esses elétrons solvatados (ou hidrolisados em água líquida) podem ser capturados por moléculas de água circundantes e, de forma análoga à fotossíntese para as plantas, promovem a síntese de moléculas orgânicas complexas. Isso inclui precursores de aminoácidos, ácidos carboxílicos, aldeídos, álcoois, açúcares e peptídeos, e também desempenham um papel na fixação de carbono e nitrogênio.
A grande novidade é que microrganismos poderiam utilizar diretamente esses elétrons solvatados como fonte de energia por meio de mecanismos como a transferência de elétrons extracelular (EET).
A ideia de que a radiação pode sustentar a vida não é mera especulação. Aqui na Terra, já conhecemos um exemplo: a bactéria Candidatus Desulforudis audaxviator. Encontrada em minas de ouro profundas e isoladas na África do Sul, essa bactéria quimioautotrófica prospera sem luz solar ou calor geotérmico, baseando-se em radicais produzidos pela radiólise natural de minerais radioativos em seu ambiente. Ela se alimenta da energia química gerada pela radiação.
Para estimar o potencial de habitabilidade da ZHR, a pesquisa utilizou o sofisticado modelo numérico GEANT4. Simulações computacionais foram realizadas para calcular as taxas de deposição de energia e de produção de elétrons nas superfícies e subsuperfícies de Marte, Europa e Encélado. A partir desses dados, estimativas de biomassa e produção de ATP (adenosina trifosfato, a principal molécula de energia celular) foram calculadas.
Os resultados são promissores e abrem novas fronteiras para a exploração:
As maiores quantidades de biomassa e produção de ATP foram encontradas em Encélado, a lua gelada de Saturno que esconde um oceano subsuperficial, seguida por Marte e Europa.
As profundidades de pico de produção de biomassa estão a poucos metros abaixo da superfície: cerca de 0,6 metros para Marte, 1 metro para Europa e 2 metros para Encélado.
A energia calculada nesses locais é mais do que suficiente para sustentar organismos do tipo D. audaxviator, indicando um potencial energético viável para a vida.
O conceito da Zona Habitável Radiolítica expande, assim, a busca por vida para além da tradicional “Zona Habitável”, que se concentra em planetas com água líquida estável na superfície. Essa nova abordagem considera locais com água subterrânea expostos à radiação cósmica, aumentando significativamente o número de potenciais locais para a existência de vida em nosso universo.
As descobertas orientam uma nova era para a exploração espacial. Para os cientistas, futuras missões planetárias devem focar na exploração dos ambientes rasos subsuperficiais de Marte, Europa e Encélado, equipadas com instrumentos para detectar biosignaturas, medir níveis de radiação e explorar a química subsuperficial. Ao mirar nessas zonas, poderemos estar um passo mais perto de responder a uma das maiores perguntas da humanidade: estamos sozinhos? A resposta pode estar escondida a poucos metros abaixo dos pés de gelo e poeira de outros mundos, alimentada por uma fonte de energia que jamais imaginamos.
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