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Francisco Galeno: a arte como paisagem da alma de Brasília

Rogério Carvalho — arquiteto e curador

O amigo Francisco Galeno partiu, mas sua obra permanece entre nós com a força e a delicadeza de quem transformou a vida em expressão artística. Artista essencialmente brasileiro, profundamente vinculado ao Nordeste e à linguagem universal da cor, Galeno moldou sua trajetória com tintas intensas, formas simbólicas e uma imaginação fértil, sempre em sintonia com os elementos mais vivos da cultura popular. Sua produção artística dialoga com um universo simbólico que resgata a memória afetiva de uma cultura que resiste às transformações e ao esquecimento, revivendo tradições em formas contemporâneas. A força de sua obra está na capacidade de traduzir o regional em linguagem universal, fazendo com que a brasilidade se manifeste de modo genuíno e cheio de sensibilidade.

Nascido no Piauí, Galeno trazia em sua memória afetiva os saberes, os brinquedos, os gestos e os rituais do interior nordestino, que transfigurava em arte com uma sofisticação intuitiva. Ao chegar a Brasília, não encontrou apenas abrigo, mas um solo fértil para expandir sua criação. A capital modernista, com suas linhas puras e horizontes abertos, tornou-se seu grande campo de experimentação — uma cidade com a qual ele dialogava não só visualmente, mas poeticamente. Esse encontro entre o Nordeste e o modernismo brasiliense não só ampliou seu vocabulário plástico, como também o colocou em contato com um público diverso e uma cena cultural vibrante. Brasília e sua arquitetura ofereceram a Galeno o espaço ideal para desafiar limites e reinventar-se em outros contextos, enriquecendo o imaginário da cidade.

Sua arte era profundamente autoral e singular. Galeno nos oferecia carretéis, pipas, estilingues, lamparinas, rodas e traquitanas — elementos que, mais do que objetos, funcionavam como símbolos da infância. Tudo ganhava cor e ritmo em suas mãos, compondo uma narrativa visual ao mesmo tempo lúdica e sofisticada, sempre impregnada de brasilidade. Essa relação com brinquedos e objetos do cotidiano, transformados em símbolos artísticos, revela seu olhar atento para as raízes culturais e a dimensão poética do que é simples. Galeno conseguia capturar a essência da infância brasileira, marcada pelo improviso, pela criatividade e pela alegria, e traduzi-la em obras que tocam tanto adultos quanto crianças, criando um diálogo atemporal.

Tive a alegria e a honra de colaborar com ele em momentos marcantes. Em 2009, na restauração da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, na 307/308 Sul — um ícone de fé e arquitetura criado por Oscar Niemeyer. A intervenção de Galeno foi delicada e precisa: respeitou a espiritualidade do espaço e, ao mesmo tempo, injetou nele uma nova vitalidade, criando uma ponte entre o sagrado e o cotidiano, entre o modernismo e o popular. Essa experiência colaborativa não apenas valorizou o patrimônio arquitetônico, mas também demonstrou o papel fundamental da arte na reinterpretação dos espaços arquitetônicos. Galeno trouxe para a Igrejinha uma nova camada de significado, reforçando a importância da arte como elemento integrador e transformador.

Brasília e sua arquitetura ofereceram a Galeno o espaço ideal para desafiar limites e reinventar-se em outros contextos, enriquecendo o imaginário da cidade // PRI-0406-OPINI – (crédito: Maurenilson Freire)

Mais recentemente, em abril deste ano, e em um gesto generoso, doou a obra As quatro estações ao Palácio do Planalto. A tela, vibrante e carregada de simbolismos visuais, agora integra o acervo da Presidência da República. Trata-se não apenas de uma doação, mas de um ato simbólico: Galeno ofereceu ao país mais um pedaço de sua poética visual, reiterando sua crença na arte como bem coletivo. O fato de sua obra estar presente em um lugar tão emblemático traz reconhecimento oficial à sua contribuição para a cultura brasileira.

Sua relação com Brasília era visceral. Galeno não foi apenas um artista que viveu aqui — ele ajudou a moldar o imaginário visual da cidade. Está presente em bens públicos, nas paredes de instituições, nas casas, nos acervos, e, sobretudo, na memória afetiva de quem vive ou visita a capital. Ele fez de Brasília uma extensão de sua paleta e, em troca, Brasília o acolheu como um de seus mais sensíveis intérpretes. Sua arte é, em muitos sentidos, um patrimônio coletivo que ajuda a compreender a identidade plural de Brasília, uma cidade marcada por contrastes e pelo encontro de diversas culturas.

Francisco Galeno foi — e seguirá sendo — um dos grandes nomes da arte brasileira. Sua partida nos entristece profundamente, mas sua obra permanece viva, atual e necessária. Ele nos ensinou que a arte pode nascer do simples, do lúdico, do popular e, mesmo assim, alcançar o sublime. Sua trajetória é um convite para que olhemos para nossas raízes com respeito e curiosidade, valorizando o que é genuíno e autêntico em nossa cultura. Galeno nos mostrou que a arte, quando nasce do amor e do pertencimento, ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço, deixando marcas profundas e inspiradoras.

Que sua memória seja celebrada com a mesma intensidade com que ele viveu e criou. E que Brasília, cidade que ele ajudou a colorir com alma e poesia, continue reverberando sua presença em cada carretel, pipa ou estilingue que ainda dança no imaginário coletivo.

Fonte: CorreioWeb

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